Processo nº: 0801020-27.2014.8.20.5124
Promovente: RENATO COSTA DE ANDRADE CAMPOS
Promovida: AMERICA FUTEBOL CLUBE
S E N T E N Ç A
Dispensado o relatório, na forma do art. 38, da Lei 9.099/95, bastando consignar que não se aplicam, neste caso, o Código de Defesa do Consumidor ou o Estatuto do Torcedor, na medida em que a entidade desportiva somente assume a condição de fornecedor quando é organizadora de competição ou detentora de mando de jogo, nos termos do art. 3º da Lei nº 10.671/2003. O afastamento do CDC, por sua vez, decorre da ausência de relação de consumo, vez que o Clube, na forma como ocorreram os fatos alegados na exordial, não se enquadra como fornecedor, restando a análise do feito sob a ótica da responsabilidade civil comum.
As provas dos autos são suficientes a formar a convicção deste Juízo e proferir o julgamento antecipado da lide, sendo desnecessário o aprazamento de audiência de instrução requerido na peça contestatória.
No mais, trata-se de ação de indenização por danos materiais e morais, intentada em desfavor do América Futebol Clube, na qual o promovente imputa a responsabilidade da entidade desportiva promovida, sob a alegação de que o clube foi omisso, deixando de prestar-lhe auxílio material após o evento danoso que o vitimou, consoante narrado na exordial, cabendo, então, a análise deste Juízo acerca de eventual responsabilidade do clube, notadamente quanto ao dano material e o dano moral.
A responsabilidade civil é originada do ato ilícito, e imprescinde da conjugação de três elementos fulcrais, sem um dos quais não há falar em ato ilícito, tornando-se, consequentemente, impossível sua caracterização. São esses elementos: a conduta (origem), o dano (resultado) e o nexo de causalidade (liame subjetivo) entre a conduta e o resultado.
Discorrer sobre a responsabilidade civil gerou a produção de diversos trabalhos acadêmicos e aprofundamentos jurídicos, de tal forma que adentrar nas minúcias desse instituto ocasionaria uma imersão profunda no universo jurídico relativo ao tema, bastando para resolução da lide apenas averiguar se os elementos macros do instituto restam intrinsecamente concatenados, em relação aos fatos expostos na exordial.
Nas palavras de Rui Stoco:
A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana. (STOCO, 2007, p.114).
O primeiro dos elementos essenciais da responsabilidade civil é a conduta, consistente em todo e qualquer comportamento praticado por uma pessoa (física ou jurídica), comportamento este que há de ser positivo (comissivo) ou negativo (omissivo), consciente e voluntário e causador de dano.
No entendimento de Maria Helena Diniz a conduta é:
A ação, elemento constitutivo da responsabilidade, vem a ser o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou licito, voluntario e objetivamente imputável do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado. (DINIZ, 2005, p. 43).
A voluntariedade é qualidade essencial da conduta, representando, via de regra, a liberdade de escolha do agente, salvo quando se está diante de responsabilidade objetiva, na qual o elemento volitivo está intimamente ligado ao risco. Sem este elemento não haveria de se falar em ação ou responsabilidade civil.
O ato de vontade, em sede de responsabilidade civil, deve ser contrário ao ordenamento jurídico. É importante ressaltar que voluntariedade significa pura e simplesmente o discernimento, a consciência da ação, e não a consciência de causar um resultado danoso, sendo este o conceito de dolo. Cabe destacar ainda, que a voluntariedade deve estar presente tanto na responsabilidade civil subjetiva quanto na responsabilidade objetiva.
O artigo 927 do Código Civil preconiza: aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Incide aqui a chamada Teoria do Risco da Atividade, que tem regaço legal no art. 927, parágrafo único, do Código Civil:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
O Código Civil prevê neste dispositivo a responsabilidade objetiva, sendo aquela que independe de culpa, quando o dano é provocado pelo simples desenvolvimento de atividade de risco ao direito de outrem. É responsabilidade fundada na teoria do risco empresarial. Falar-se-ia em responsabilidade subjetiva se a causação do dano fosse oriunda de conduta perpetrada com culpa, no sentido lato sensu, a qual engloba dolo e culpa.
Toda atividade desenvolvida que por sua natureza gere um risco para terceiros enseja o dever de reparar os danos dela advindos, sem que seja necessária a comprovação de culpa da parte do autor do ato. Saliente-se que não há necessidade de que do desempenho dessa atividade resulte lucro ou vantagem econômica para que haja a caracterização de sua responsabilidade objetiva, bastando apenas a ocorrência do dano decorrente do risco criado.
No caso dos autos, sequer é preciso avançar para outro dos elementos essenciais da responsabilidade civil. A conclusão do mérito já esbarra no elemento conduta, pelo qual se infere a inocorrência de caracterização da responsabilidade civil, na medida em que a entidade desportiva não concorreu de nenhum modo para que se configurasse o evento danoso.
O evento danoso – explosão do fogo de artifício na mão – ocorreu exclusivamente do fato de o promovente ter conduzido o material pirotécnico ao centro de treinamento do clube e o acionado de maneira incorreta, ocasião em que o rojão decepou-lhe os dedos da mão. Nada obstante um dos dirigentes do clube tê-lo conduzido ao hospital para os primeiros socorros, a entidade não tinha obrigação nenhuma de assisti-lo materialmente durante sua recuperação.
O promovente ventila na exordial a responsabilidade objetiva do clube. Todavia, esta inexiste, vez que o comparecimento dos torcedores naquele dia, foi para participar de protesto em dia trivial de treinamento, em que não havia qualquer evento oficial que impusesse ao clube o dever de vigilância e proteção dos presentes previsto no art. 13 do Estatuto do Torcedor. Válido reforçar que a condição de fornecedor do clube, a ponto de atrair a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor, existe apenas em eventos desportivos nos quais seja organizador e/ou detentor do mando de campo, nos termos do artigo 3º da Lei nº 10.671/2003, in verbis:
Art. 3o Para todos os efeitos legais, equiparam-se a fornecedor, nos termos da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo.
Logo, o dever de vigilância e proteção imposto pela regra do art. 13 do Estatuto do Torcedor não obrigava o clube naquele dia fatídico, dado que não havia nenhum evento oficial ocorrendo no local do treinamento, mas tão somente uma atividade trivial do clube aberta ao público.
Neste diapasão, rememorando-se o conceito de conduta discorrido alhures, conclui-se incontestavelmente que a parte promovida em momento algum incorreu em qualquer atitude comissiva que provocasse o evento danoso – até mesmo por impossibilidade – tampouco desempenhou suas atividades de forma negligente no dia fatídico. Nada poderia fazer para evitar que o torcedor acionasse incorretamente o artefato. Saliente-se, inclusive, que não constitui ato ilícito civil ou mesmo infração penal usar fogos de artifício, estando seu uso regulado pelo Decreto-Lei nº 4.238/42, e havendo restrição tão somente nos locais de evento desportivo, nos termos do art. 13-A, do Estatuto do Torcedor.
Em síntese, o dano causado ao promovente foi fruto de sua própria imprudência e imperícia, motivo pelo qual, inexistindo conduta da parte promovida no evento danoso, inexiste, por consectário lógico, responsabilidade civil a ser imputada.
Por mera argumentação, mesmo que restasse configurada a responsabilidade civil objetiva da parte promovida, estaria caracterizada a culpa exclusiva da vítima, consistente na circunstância que exime completamente a responsabilidade do agente. Caso a culpa não fosse exclusiva, haveria concorrência de culpas, o que diminuiria a indenização a ser paga pelo agente, conforme o Código Civil:
Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.
Sendo a culpa, porém, exclusiva, não haveria o que se falar em nexo causal da conduta com o dano provocado, pois o nexo se encontrará unicamente entre a conduta provocada pela vítima e o dano por ela sofrido.
Por fim, quanto ao pedido contraposto da parte promovida, a improcedência é o único resultado possível. Primeiro, porque não delimitou o valor do dano pretendido, sendo vedada a prolação de sentença ilíquida no Juizado Especial, a teor do art. 38, § único, da Lei nº. 9.099/95. Segundo, se o pedido está fundamento no risco de dano aos atletas, a parte promovida não é parte legítima para demandá-lo, porquanto não sofreu diretamente o risco ou o efetivo dano. Terceiro, porque não restou
sequer evidenciado dano material provocado pelo promovente em desfavor do clube, tampouco o dano extrapatrimonial.
A possibilidade de a pessoa jurídica sofrer abalos de caráter extrapatrimonial é questão consolidada na jurisprudência pátria, conforme atesta, inclusive, o teor da Súmula nº 227 do STJ, segundo a qual, "a pessoa jurídica pode sofrer dano moral", fato que se afirma, sobretudo, quando o dano perpetrado coloca em risco o desenvolvimento das atividades desenvolvidas pela empresa prejudicada ou a seriedade e credibilidade de seu nome frente a seus clientes.
Sobre o tema, assim são os ensinamentos Ministro Ruy Rosado de Aguiar:
“Quando se trata de pessoa jurídica, o tema da ofensa à honra propõe uma distinção inicial: a honra subjetiva, inerente à pessoa física, que está no psiquismo de cada um e pode ser ofendida com atos que atinjam a sua dignidade, respeito próprio, auto-estima etc., causadores de dor, humilhação, vexame; a honra objetiva, externa ao sujeito, que consiste no respeito, admiração, apreço, consideração que os outros dispensam à pessoa. Por isso se diz ser a injúria um ataque à honra subjetiva, à dignidade da pessoa, enquanto que a difamação é ofensa à reputação que o ofendido goza no âmbito social onde vive. A pessoa jurídica, criação da ordem legal, não tem capacidade de sentir emoção e dor, estando por isso desprovida de honra subjetiva e imune à injúria. Pode padecer, porém, de ataque à honra objetiva, pois goza de uma reputação junto a terceiros, passível de ficar abalada por atos que afetam o seu bom nome no mundo civil ou comercial onde atua”.
Ademais, são diversos os julgados neste sentido:
APELAÇÃO. PROCESSO CIVIL. PESSOA JURÍDICA. PROTESTO DEVIDO. DANOS MORAIS. NÃO ACOLHIDOS.
É possível que a pessoa jurídica sofra dano moral e deve por ele ser indenizada, consoante súmula 227 do STJ. Contudo, somente é passível de lesão sua honra objetiva, ou seja, sua fama, conceito, nome e credibilidade, que afetem seu patrimônio.
Comprovado o inadimplemento, e não tendo a parte autora comprovado que o protesto efetuado pela parte ré ocorreu de forma indevido, não há que se falar em ato ilícito, e, assim, em danos morais.
Recurso de Apelação não provido.
(Acórdão n.666246, 20120310113149APC, Relator: Ana Maria Duarte Amarante Brito, 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/04/2013, Publicado no DJE: 09/04/2013. Pág.: 188).
E do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INTERRUPÇÃO DE SERVIÇO DE ENERGIA. DANO MORAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO.
1. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral desde que haja ferimento à sua honra objetiva, ao conceito de que goza no meio social.
2. O mero corte no fornecimento de energia elétrica não é, a principio, motivo para condenação da empresa concessionária em danos morais, exigindo-se, para tanto, demonstração do comprometimento da reputação da empresa.
3. No caso, a partir das premissas firmadas na origem, não há fato ou prova que demonstre ter a empresa autora sofrido qualquer dano em sua honra objetiva, vale dizer, na sua imagem, conceito e boa fama. O acórdão recorrido firmou a indenização por danos morais com base, exclusivamente, no fato de que houve interrupção no fornecimento do serviço prestado devido à suposta fraude no medidor, que não veio a se confirmar em juízo.
4. Com base nesse arcabouço probatório, não é possível condenar a concessionária em danos morais, sob pena de presumi-lo a cada corte injustificado de energia elétrica, com ilegítima inversão do ônus probatório.
5. Recurso especial provido.” (REsp 1298689/RS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 09/04/2013, DJe 15/04/2013).
No caso em tela, porém, o fato ocorrido não tem o condão de macular sua honra objetiva, a ponto de impedi-la de transicionar com instituições financeiras, ou ocasionar sua má reputação na praça.
Ademais, frize-se que se a parte promovida não queria que os torcedores adentrassem ao centro de treinamento com artefatos pirotécnicos, adotasse as providências necessárias ao impedimento do acesso com os referidos artefatos. E não adianta argumentar que o ingresso de torcedores com fogos de artifício seria imprevisível, pois neste país é comum que isto ocorra, máxime em clubes de futebol. Se não decorre o dever de vigilância e proteção consignado no Estatuto do Torcedor, decorre o dever de adotar as cautelas necessárias a implantar suas exigências quanto ao comportamento do torcedor em dias de treino no clube. Isto é, se não quer torcedores adentrando às dependências com fogos de artifício em dias nos quais não haja evento oficial, faça como em dias de jogos, utilizando-se de segurança privada para revista pessoal. Por isso, a ação deve ser julgamento integralmente improcedente.
Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos formulados na inicial, e na mesma toda, JULGO IMPROCEDENTE o pedido contraposto, pelo que extingo o processo com resolução do mérito, com fulcro no artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil.
Sem custas nem honorários advocatícios (art. 55 da Lei nº 9.099/95).
Publicação, Registro e Intimações automatizadas.
Parnamirim/RN, 30 de junho de 2015.
Ana Cláudia Braga de Oliveira
Juíza de Direito
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