16 de ago. de 2014

Fantasma e a goleada - por Rubens Lemos Filho

Sentou, invisível, na Tribuna de Honra do novo e luxuoso Maracanã. Estranhou. Faltavam crioulos na geral. Faltavam desdentados. Faltavam grã-finas de narinas cadavéricas. Faltava a alma pura do estádio emocional que ele descrevera e sacudira nos seus textos. Quase apoplético, berrou para ninguém ouvir: “Não tem mais geral e o público é de um luxo de hipódromo!”.
O fantasma de Nelson Rodrigues decidiu assistir Fluminense x América, que os seus colegas de Cemitério São João Batista garantiram ser barbada. “Vai lá, profeta. O tricolor enfiou três na casa deles e aqui vai ser barbada”. Nelson Rodrigues estava entediado com o silêncio dos sepulcros e as balas traçantes cruzando favelas próximas ao seu endereço residencial desde 1980 e para sempre.
Atravessou o muro feito raio, subiu num ônibus, “num lotação”, corrige rabugento e partiu para o Maracanã sem as rampas de miscigenação social. Entrou numa arena. “E estamos em Roma? São gladiadores nossos antigos astros em flor de futebol.”
Sentou. A dois metros, namoradinhos bem vestidos trocavam carícias sem a obscenidade vital para suas crônicas. “Na penumbra do estádio, somem os pudores”, rosnou, quase cego e ofuscado pelas luzes cinematográficas do palco onde o Brasil não manda mais.
O Maracanã é alemão, Mário Gotze, o menino autor do gol da Copa do Mundo é o Amoroso, o Almir, o Ademir, o Dida, o Vavá, o Carlyle e o Flávio campeão de 1969. Chamá-lo de Didi e Garrincha é matar de novo a alma penada.
Lá vem o Fluminense. “Um Fluminense holandês é uma Holanda laranjeira”, poetizou , sem ninguém a aplaudir. Duas jovens comentavam a roupa de grife uma da outra e o penteado de 250 reais para ver o jogo.
O América, de branco, humilha o Fluminense de 5×2. Nelson Rodrigues reluz nos olhos mortos ao brindar o atacante Rodrigo Pimpão: “Esse é predestinado, é um predestinado profissional. É um doce assassino de goleiros, que América mais valente! E que tricolor mais indecente. Mais que ele, só o estádio que parece uma catedral pintada por Michelângelo”.
O fantasma levanta voo e retorna ao São João Batista, avisando aos vizinhos em sarau inspirado: “Não me importunem. Saí para ver um Fluminense vestido de Holanda que nem Olaria foi. Terminei vendo um América igual a um exército de cruzadas, derrotando inimigos arrogantes e sem garra”. Nelson Rodrigues lamenta não poder escrever uma crônica sobre o show alemão do América, segundo tempo dos tempos.
Com você, o Mecão é ainda mais forte. Seja Sócio!

3 comentários:

rossine cavalcante disse...

Rapaz, narrativa mais original e arrepiante do que essa, só se fizesse um estádio no próprio cemitério onde está o Nelson Rodrigues.

Anônimo disse...

O americano faz a leitura da crônica como uma criança "saboreira" um sorvete.
Palavras de um abecedista que respeita e sabe reconhecer os feitos do adversário.
É o verdadeiro torcedor, um verdadeiro desportista.
Parabéns Rubens Lemos Filhos, você tem toda a minha admiração.

Anônimo disse...

Esse Rubinho continua nos encantando...
Um texto estrelado, nota 10...!
...tal qual o Maracanaço vermelho na noite da quarta!

Maciel
CONSELHEIRO

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