Quando falta pouco para completar 15 anos, o menino olha ao espelho se achando homem quando nem adolescente é. É a fase na qual qualquer fato mais grave toma proporções trágicas e ferem como brasa em gado pelo resto de nossas vidas.
Aluno da Escola Técnica Federal, cursando Estradas, saía da rigidez da escola religiosa para a liberalidade do ensino médio sem cobranças com frequência. Aprendi na antiga ETFRN, hoje IFRN, que você define seu destino. Se quiser assistir aula, assista. Se não quiser, vá bater perna na área de lazer ou dormir sob a marquise do campo de futebol. Reprovado, sua vida atrasa.
Em matérias de fórmulas e cálculos, sempre fui desastroso. Para conseguir uma nota 6, precisava da solidariedade dos comparsas com a cola solidária. Muitas vezes passei minha prova em branco ao colega que me entregava a dele, preenchida e correta. O truque sempre foi o de sentar perto do amigo confiável.
Em 1985, primeiro semestre, tive uma professora de Química inesquecível, Professora Socorro, olhos de diamante, amável, gordinha, humanizava a chatice dos atalhos que sua disciplina exigia. Fui tirando boas notas, nem precisava da clandestinidade da malandragem.
Já não era mais seu aluno quando chegava uma manhã à escola e encontrava o clima de comoção. A professora estava morta, jovem ainda, menos de 40 anos. Sofreu um enfarte na banheira de casa, fulminante, sem chances de reanimação. Chorei escondido por entre os carros do estacionamento. Brotava minha revolta ao saber que os bons partem primeiro.
Socorro era casada com o lateral-direito do América, o famoso Ivã Silva. Negro elegante, carioca, chegou em 1973 para o timaço que conquistaria a Taça Almir, pelo melhor desempenho entre os clubes do Norte e Nordeste no Campeonato Brasileiro.
Sempre sorridente o Ivan Silva que estragava os meus prazeres partindo da defesa e trocando de função com o ponta Ronaldinho para entrar em diagonal na área do ABC e cruzar para Aloísio, Alberi ou Marinho Apolônio naquele campeonato de 1977, perdido em três pancadas de 1x0, sempre com Ivan Silva moderno e incansável pelo destro canto do campo.
Um tempo de paz, sem torcidas organizadas bestiais , mas, entre os dirigentes, havia o radicalismo provocativo. Até mesmo a boleirada entrava na bobagem, trocando desaforos em véspera de clássicos. Dois passavam ao largo: Danilo Menezes pelo ABC e Ivan Silva pelo América. O América sempre desejou Danilo e o ABC jamais escondeu o sonho de ver Ivan jogando de preto e branco.
Há jogadores de um manto só complementando a pele. Ivan Silva foi um senhor campeão pelo América em seus duelos contra Edmílson do Alecrim, Noé Macunaíma e Berg do ABC, este, um jovem a quem teve que apelar para as porradas de vez em quando, desconcertante a habilidade do rapaz.
Com Ivan Silva, o América foi bicampeão em 1974 e 1975, 1977, 1979, 1980,1981 e 1982. Sete troféus no Castelão(Machadão) de onde não saiu quando pendurou as chuteira, já atuando, como um Leandro ou Carlos Alberto Torres papa-jerimun, de zagueiro-central.
Decidiu ser árbitro e sua velocidade superava, quase sempre, à dos pontas e laterais que não lhe amarravam chuteiras. Ivan resolveu dar uma guinada no gramado pela dimensão do seu caráter. Numa final de turno entre América e Alecrim, considerou que o adversário foi injustiçado e saiu para ser imparcial na vida.
Ivan Silva, após a morte da Professora Socorro, reconstruiu sua vida, recomeçou, formou nova família, tem dois filhos, um deles, Ivanzinho, craque de futebol de salão quando criança.
Ivan Silva é, sim, uma das lembranças marcantes do meu tempo. Foi o maior lateral-direito do Rio Grande do Norte na fase do Estádio da Lagoa Nova. Um rei banto, de talento e humildade, alegria rasgada, cruzamentos e visão de jogo próximos à perfeição. Ivan Silva, do América e de todos nós, orgulhosos por tê-lo como filho adotivo.
Texto de Rubens Lemos Filho (jornalista), publicado na Coluna Passe Livre, Jornal de Hoje em 04/02/2013
4 comentários:
Maravilhoso texto. Sempre fui fã de Ivã, o maior lateral direito da história do futebol do RN, e o acompanhei em praticamente toda a sua passagem no Mecão. Lembro muito da torcida o carregando nos braços após a conquista do tetracampeonato invicto de 82 e depois, do lado de fora do Machadão (ainda Castelão naquele ano), Ivã, sem camisa, distribuía abraços aos torcedores em frente ao portão 5, de onde sairia uma grande passeata (isso mesmo, a maioria a pé), rumo à sede da Rodrigues Alves. Bons tempos do Mecão.
Ass: Adriano
Belíssimo texto. Parece que se está a falar de outro esporte, se comparado ao que temos hoje de futebol no RN.
Flávio Carneiro
Também quero enaltecer o texto de Rubinho, um jornalista que tem a capacidade de escrever muito bem, sobre diversos temas. Vivi essa época áurea do nosso futebol e pude apreciar o belo futebol de Ivan Silva. Pude vê-lo dar um nó em Paulo Cesar Cajú e tantos outros. Bela Homenagem!
COMECEI A ACOMPANHAR FUTEBOL EM 1979, JUSTAMENTE O INÍCIO DO TETRA DO AMÉRICA E DE IVAN, GRANDE JOGADOR. IA NA POUSADA DO ATLETA COM MEU PAI, ACOMPANHAR OS TREINOS. FUI ALUNO DA PROFESSORA SOCORRO, NA ETFRN, EM 1983.
CARLOS MOURA.
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