Vamos desancar Valério, chutemos o maltrapilho. É próprio da raça humana pisotear o indefeso, o sem destino, o esquecido, o acuado nas esquinas.
Um país que já passou a mão na cabeça de quem tocou fogo em um índio que dormia ao desabrigo, de forma cínica e paternalista, faz tanto ou mais com os ex e os humilhados.
Fosse ao tempo do delegado Maurílio Pinto – podiam avisar à Chefatura de Polícia: Vou reagir no tapa dos indignados ao próximo que me chegar em seu prazer perverso para falar mal de Valério, que foi do América de Natal , um homem vencido pelo álcool e um craque de futebol dos maiores produzidos no Rio Grande do Norte.
Valério, meio-campista que jogava nas três posições(volante,meia-armador e ponta-de-lança), driblava em cortes de tesoura e partia ultrapassando intermediárias com volúpia e raça, fazendo de sua correria de bola colada no pé, um gesto de bravura e vingança diante da vida que o rejeitara. Ou terá sido ele que dela abrira mão.
Um craque descoberto nos juvenis em 1981 e imediatamente posto no time profissional. Tetracampeão em 1982, entrando na equipe com participações deslumbrantes, a partir de 1983, titular absoluto. Seu domínio de bola, de amante ou diamante polido.
Do amante que ordena para a companheira submissa por opção, após sexo serial e pago com parceiros mecânicos, que se deite ou caia em seus braços bêbados para a luxúria em ambiente soturno e febril de paixão. Diamante polido depois de o ourives intuitivo enxergá-lo em rasgos de habilidade debochada.
Deboche, fanfarra, Valério jogava feito o menino de rua que chamava o colega tosco para a finta, o toque por entre as pernas e o calcanhar jogando a bola de um lado a outro até o gol mais do que perfeito.
Valério foi aquele cara que, na pelada, primeiro escolhido, carimbava na testa e na malandragem pintada no andar, a definição do melhor boleiro dos terrenos sem grama. Há mundo velho e bom, que me permitiu ver Valério.
Pobres marcadores dele. O mais sofrido e resignado: Arié, volante do ABC, campeão estadual em 1978, 1983(na reserva) e 1984. Os domingos de Arié começavam com orações aos céus da piedade, implorando aos deuses e santos padroeiros que parassem o rapaz moreno de cabeleira Black Power em seu instinto e em seu ímpeto de extrema categoria.
Bailado de um homem só. Valério passava o pé sobre a bola na intermediária em sua luta quase solitária contra dois grandes alvinegros: Dedé de Dora e Marinho Apolônio, construtores da redenção alvinegra. Dedé e Marinho, arquitetos sem diploma e de prancheta invisível.
Valério não temia Dedé ou Marinho, com eles travava duelos de arena, de toques magistrais, numa cantoria de poetas sem a força da letra mas com a genialidade do repente. Arié, coitado, quantas vezes pendurado, por lealdade, por evitar a pancadaria, na camisa 10 de Valério. Cenas tragicômicas na Lagoa Nova.
Valério cortava para o lado direito, próximo à torcida do América no Castelão(Machadão). Berros de delírio e incentivo. Histeria de encanto. Ameaçava lançar o atacante, sei lá, Tião Marçal, pronto, Tião Marçal, que se posicionava para receber. Poderia ser Tião Marçal, Alcino ou Miltão, pouco importava o centroavante, detalhe com Valério em campo.
Arié dava-lhe o mínimo espaço e tomava a caneta passando a correr atrás de Valério como o marido traído em plena quermesse no Agreste, chão do craque da rebeldia. Valério driblava, driblava e driblava para extravasar a fúria que os seus olhos esbugalhados exclamavam ao estádio inteiro.
Valério bebia, Valério bebum. No segundo momento de Valério, na segunda metade da década de 1980, foi emprestado ao ABC para o Campeonato Nacional e fez boas partidas. Voltou e seguiu ao Clube do Remo. Ídolo.
De novo, no América, formou meio-campo experiente e cadenciado com Dedé de Dora. A meninada limitada queria forçar a velocidade sem tempero e os dois tocavam a bola, com jeito, malabarismo e ensinamentos que o perna-de-pau confundia com exibicionismo. Foram bicampeões em 1991 e 1992.
Valéria bebia mais e em compulsão. E por mais que jogasse o fino das plumas, a inveja radiofônica dedicava-lhe o espaço invasivo da sua vida particular controversa como um Heleno de Freitas dos canaviais, talentoso, mas sem o charme noir do louco centroavante do Botafogo.
O América vai a um jogo decisivo fora de casa e o treinador, irritado, encontra Valério na hora da viagem, embriagado. “Está fora, eu mando”. Uma figura do invisível universo futebolês, telefona para o educado(mas firme) presidente Jussier Santos. “O América viaja e viaja com Valério. Ele vai dormindo que no jogo, resolve.” O América venceu e a nota 10 de craque do jogo foi do herói torto.
Quando encontrei Valério, caminhando, pernas finas, de cowboy, pelas ruas do centro decadente de Natal, ele no olhar sem direção dos afogados, aperto sua mão e digo, ainda que ele não queira ouvir e esqueça, no segundo adiante: “Obrigado Seu Vavá, você foi craque de bola, um dos melhores que vi. Obrigado por tudo o que me proporcionou, até as derrotas.”
* texto do jornalista Rubens Lemos Filho publicado na coluna Passe Livre, do Jornal de Hoje, em 20/12/12
2 comentários:
andré vermelho
caro amigo Sergio fui juvenil do mecão, cujo treinador era Aram , naquela época eu me espelhava nesse cara pois eu ficava deslumbrado assistino os treinos dos profissionais quando acabava nosso treino,eu ficava só pra ver Valerio treinar, simplismente ele roubava a cena,com jogadas indriveis, é uma pena que o fim foi outro.
Camilo disse:
Tive a satisfação de ver Valério jogando, e jogava muito. Primeiro gostaria de parabenizar o jornalista Rubens Lemos Filho, alguém que não conheço pessoalmente e sei das suas preferências, mas, tem se comportado como um verdadeiro profissional, com certeza herança do saudoso pai. Aliás, o RN precisa de profissionais iguais a você Rubens Filho, pois, outros que temos visto é de fazer vergonha que não me atrevo a chamar de profissionais. Mas, deixando essas coisas pequenas de lado, o importante é o reconhecimento pelo futebol que jogava Valério de um profissional da sua categoria. Também já encontrei Valério algumas vezes na rua como se fosse algumém sem nenhuma importância para a história futebolística do RN, alguém que tantas alegrias deu a torcida do Mecão, meu clube de coração. O álcool tem destruído vidas, e, infelizmente continuará destruindo. Meu desejo é que Deus ajude a todas as pessoas que sofrem desse mal. Aproveito a oportunidade e ocupo esse espaço para desejar a todos um Natal na presença do Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e, que em 2013 tenhamos mais alegrias. PARABÉNS RUBINHO, POIS NESSE TEXTO AFIRMO SEM NENHUM MEDO DE ERRAR: VOCÊ É O CARA.
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