Relutei
por alguns meses e resolvi assistir a um clássico entre Mixto e Operário de
Várzea Grande em 1987. Fomos morar em Cuiabá(MT), onde a minha alegria maior
era aguardar a passagem do carteiro, de bicicleta, esperando alguma mensagem
escrita de amigos, primos, namoradas perdidas para as andanças familiares.
Minha avó nunca falhava.
Sabia, pelo fanatismo em plena forma, que o ponta-esquerda do Operário, o Chicote da Fronteira, era velho e conhecido algoz de minhas tardes no Estádio Castelo Branco em Natal. Uma flecha loura veloz e hábil, de dribles curtos e toques sutis na bola, exímio cobrador de faltas.
Muita, tremendas tristezas Ivanildo Arara me causou pela ponta-esquerda do América. O Arara vinha do seu nariz pontiagudo, menos agressivo do que de Pinóquio. O Gepeto da fábula foi muito cruel com Ivanildo. O que de bonito faltava em seu rosto, brotava a cada partida que jogava na Lagoa Nova.
O
nariz de Ivanildo inspirou um nada romântico primo, torcedor do América. Ele
arrumou uma namorada e me apresentou, certa noite, num bar. "O nome dela é
Neuza. É tão bonitinha. Botei o apelido de Ivanildo Arara." A moça,
constrangida, perguntou se era por causa do nariz. Tentei consertar, explicando que ela tinha um
andar muito elegante.
O
ABC sempre teve tradição de bons laterais-direitos. O primeiro a ser convidado
a se retirar dos clássicos foi Sabará, o intocável dos idos do tetra de 1973,
humilhado pelos bailes de Ivanildo, em cortes diagonais, arrancadas para
cruzamentos certeiros para os atacantes Reinaldo e Pedrada e o genial Hélcio
Jacaré.
Ivanildo,
que começou no Sport Recife (era ainda mais feio quando juvenil guindado a
titular em 1970), foi contratado pelo Força e Luz, time financiado pela Cosern,
que na época ousou investir muito dinheiro público em ótimos jogadores, para
propagandear o Governo do Estado.
Ivanildo
tornou-se um inferno magro para Sabará e até para o incansável Ivan Silva, seu
futuro companheiro no América. Com ele foi vestir a camisa vermelha um quase
gêmeo, o lateral-esquerdo, Olímpio. Florescia nos clássicos uma jogada
histórica.
Olímpio
e Ivanildo invertiam posições e desnorteavam o lado direito de qualquer
adversário do América. Olímpio marcava e atacava. Ivanildo recuava até a
intermediária para usar de sua habilidade prendendo o avanço dos atacantes que
enfrentava.
No
Campeonato de 1975, Ivanildo, o Arara, marcou o gol do título, o terceiro, de
falta, bola fazendo uma curva ,vencendo o lendário goleiro Hélio Show e selando
o bicampeonato americano na vitória por 3x1. Também seria campeão em 1977, na
famosa briga no clássico final que, pela primeira vez, pôs o Rio Grande do
Norte nas imagens do Fantástico.
Ivanildo
Arara sabia se desvencilhar dos zagueiros com a característica improvável dos
dribladores. Usava sua técnica para se livrar das pancadas que sofria nos
joelhos ossudos. Poderia usar seu nariz para perfurar o inimigo, mas não era do
seu feitio pacato.
No
domingo de 1987, parti ao Estádio Verdão, a duas quadras da casa em que
morávamos. Um domingo caminhando sozinho, sem time algum para torcer. Apenas
remoendo as recordações da arquibancada distante 3 mil quilômetros, o lugar
onde gostaria de estar, de verdade.
O
Operário de Várzea Grande tentava o
tricampeonato e estava, para Mato Grosso, como o América para o Rio Grande do
Norte. Alvinegro com uniforme igual ao do Vasco, o Mixto, o mais popular, seria
o hipotético ABC.
Escolhi
a arquibancada por trás de um dos gols, havia umas 10 mil pessoas no Estádio
Verdão. Cuiabá é boa cidade, mas seus habitantes não são afetuosos e receptivos
além da faixa do desconfiômetro. Nós, natalenses, não, chegou chiando aqui,
abrem-se casas, empregos, braços e pernas. O bairrismo é péssimo. A
subserviência é a sua bastarda.
Tentei
puxar assunto com uns três caras. Ninguém me deu a menor atenção. Me concentrei
em Ivanildo Arara. Um pouco arqueado, pernas tortas, mais magro ainda do que
nos tempos do América. E o narigão de Visconde de Sabugosa, fundamental para
uma vitória numa prova acirrada de 100 metros rasos.
O
lateral-direito do Mixto chamava-se Elias, que depois foi para o Corinthians(SP)
e em 1999 sagrou-se campeão pelo ABC. Elias estava começando, cheio de gás. Na
primeira investida, Ivanildo balançou. Elias jogou o tórax para o confronto
corporal.
Ivanildo,
bailando como um papagaio colorido, tocou a bola entre as pernas de Elias, correu pela linha lateral e adiantou,
conseguindo prosseguir a jogada. Chegou a cruzar para o atacante Nasser
cabecear com perigo. Elias veio por trás e tocou-lhe o tornozelo.
Ivanildo
Arara caiu e mancou. Continuou em campo, sem nenhuma nova investida pela linha
de fundo. Estava liquidado no jogo, ganho pelo seu time por 1x0. Foi recuado para a meia-esquerda. Passou a
fazer número. Ficamos iguais no estádio. Dois desconhecidos em território
estranho.
* Rubens Lemos Filho, jornalista, editor da coluna Passe Livre, do Jornal de Hoje
* Rubens Lemos Filho, jornalista, editor da coluna Passe Livre, do Jornal de Hoje
Vamos continuar apostando na Timemania
0 comentários:
Postar um comentário
Política de moderação de comentários:
A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência. Não serão aceitos comentários anônimos ou que envolvam crimes de calúnia, ofensa, falsidade ideológica, multiplicidade de nomes para um mesmo IP ou invasão de privacidade pessoal / familiar a qualquer pessoa. Comentários sobre assuntos que não são tratados aqui também poderão ser suprimidos, bem como comentários com links. Este é um espaço público e coletivo e merece ser mantido limpo para o bem-estar de todos nós.
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.