28 de jul. de 2012

Ivanildo Arara - por Rubens Lemos Filho*



Relutei por alguns meses e resolvi assistir a um clássico entre Mixto e Operário de Várzea Grande em 1987. Fomos morar em Cuiabá(MT), onde a minha alegria maior era aguardar a passagem do carteiro, de bicicleta, esperando alguma mensagem escrita de amigos, primos, namoradas perdidas para as andanças familiares. Minha avó nunca falhava.


Sabia, pelo fanatismo em plena forma, que o ponta-esquerda do Operário, o Chicote da Fronteira, era velho e conhecido algoz de minhas tardes no Estádio Castelo Branco em Natal. Uma flecha loura veloz e hábil, de dribles curtos e toques sutis na bola, exímio cobrador de faltas.


Muita, tremendas tristezas Ivanildo Arara me causou pela ponta-esquerda do América. O Arara vinha do seu nariz pontiagudo, menos agressivo do que de Pinóquio. O Gepeto da fábula foi muito cruel com Ivanildo. O que de bonito faltava em seu rosto, brotava a cada partida que jogava na Lagoa Nova.

O nariz de Ivanildo inspirou um nada romântico primo, torcedor do América. Ele arrumou uma namorada e me apresentou, certa noite, num bar. "O nome dela é Neuza. É tão bonitinha. Botei o apelido de Ivanildo Arara." A moça, constrangida, perguntou se era por causa do nariz.  Tentei consertar, explicando que ela tinha um andar muito elegante.

O ABC sempre teve tradição de bons laterais-direitos. O primeiro a ser convidado a se retirar dos clássicos foi Sabará, o intocável dos idos do tetra de 1973, humilhado pelos bailes de Ivanildo, em cortes diagonais, arrancadas para cruzamentos certeiros para os atacantes Reinaldo e Pedrada e o genial Hélcio Jacaré.

Ivanildo, que começou no Sport Recife (era ainda mais feio quando juvenil guindado a titular em 1970), foi contratado pelo Força e Luz, time financiado pela Cosern, que na época ousou investir muito dinheiro público em ótimos jogadores, para propagandear o Governo do Estado.

Ivanildo tornou-se um inferno magro para Sabará e até para o incansável Ivan Silva, seu futuro companheiro no América. Com ele foi vestir a camisa vermelha um quase gêmeo, o lateral-esquerdo, Olímpio. Florescia nos clássicos uma jogada histórica.

Olímpio e Ivanildo invertiam posições e desnorteavam o lado direito de qualquer adversário do América. Olímpio marcava e atacava. Ivanildo recuava até a intermediária para usar de sua habilidade prendendo o avanço dos atacantes que enfrentava.

No Campeonato de 1975, Ivanildo, o Arara, marcou o gol do título, o terceiro, de falta, bola fazendo uma curva ,vencendo o lendário goleiro Hélio Show e selando o bicampeonato americano na vitória por 3x1. Também seria campeão em 1977, na famosa briga no clássico final que, pela primeira vez, pôs o Rio Grande do Norte nas imagens do Fantástico.

Ivanildo Arara sabia se desvencilhar dos zagueiros com a característica improvável dos dribladores. Usava sua técnica para se livrar das pancadas que sofria nos joelhos ossudos. Poderia usar seu nariz para perfurar o inimigo, mas não era do seu feitio  pacato.

No domingo de 1987, parti ao Estádio Verdão, a duas quadras da casa em que morávamos. Um domingo caminhando sozinho, sem time algum para torcer. Apenas remoendo as recordações da arquibancada distante 3 mil quilômetros, o lugar onde gostaria de estar, de verdade.

O Operário de Várzea Grande  tentava o tricampeonato e estava, para Mato Grosso, como o América para o Rio Grande do Norte. Alvinegro com uniforme igual ao do Vasco, o Mixto, o mais popular, seria o hipotético ABC.

Escolhi a arquibancada por trás de um dos gols, havia umas 10 mil pessoas no Estádio Verdão. Cuiabá é boa cidade, mas seus habitantes não são afetuosos e receptivos além da faixa do desconfiômetro. Nós, natalenses, não, chegou chiando aqui, abrem-se casas, empregos, braços e pernas. O bairrismo é péssimo. A subserviência é a sua bastarda.

Tentei puxar assunto com uns três caras. Ninguém me deu a menor atenção. Me concentrei em Ivanildo Arara. Um pouco arqueado, pernas tortas, mais magro ainda do que nos tempos do América. E o narigão de Visconde de Sabugosa, fundamental para uma vitória numa prova acirrada de 100 metros rasos.

O lateral-direito do Mixto chamava-se Elias, que depois foi para o Corinthians(SP) e em 1999 sagrou-se campeão pelo ABC. Elias estava começando, cheio de gás. Na primeira investida, Ivanildo balançou. Elias jogou o tórax para o confronto corporal.

Ivanildo, bailando como um papagaio colorido, tocou a bola entre as pernas de Elias,  correu pela linha lateral e adiantou, conseguindo prosseguir a jogada. Chegou a cruzar para o atacante Nasser cabecear com perigo. Elias veio por trás e tocou-lhe o tornozelo.

Ivanildo Arara caiu e mancou. Continuou em campo, sem nenhuma nova investida pela linha de fundo. Estava liquidado no jogo, ganho pelo seu time por 1x0.  Foi recuado para a meia-esquerda. Passou a fazer número. Ficamos iguais no estádio. Dois desconhecidos em território estranho. 


* Rubens Lemos Filho, jornalista, editor da coluna Passe Livre, do Jornal de Hoje

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