Rubens Lemos Filho
Jornalista
Quando nem se pensava em TV por assinatura e quem gostava de futebol, deixava o domingo dentro do lençol, ligado na Rede Bandeirantes. Transmissões ao vivo de campeonatos da Itália ao Gabão, de Bragança Paulista ao Afeganistão. Sem pagar nada, o fanático via de peteca a sinuca, de basquete a arremesso de disco.
Naquele tempo, a Bandeirantes juntou craques veteranos, montou uma ótima seleção de masters que invadia os gramados e as às telas do país sempre às 11 da manhã. Jogava-se em Araraquara, Colatina, Teresina, Cuité. O narrador Luciano do Valle chefiava a equipe de esportes e treinava o time.
A meninada, então, conheceu os dribles curtos e os elásticos que Rivelino, inspirador de Maradona, aplicava nos marcadores postos abaixo. Riva era a estrela da companhia, que ainda tinha Ado tricampeão reserva de 1970 no gol, os falecidos Toninho Baiano na lateral-direita, Djalma Dias na zaga e Cafuringa na ponta-direita, Clodoaldo, Edu do Santos, na ponta-esquerda e Lola, ex-Atlético(MG), de centroavante.
Num dos belos domingos de minha vida, em 1986, aos 16 anos incompletos, fui ao ainda Castelão por volta das 8 da matina, esperar pela seleção de masters do Brasil. Na previsão do comentarista da Bandeirantes, Juarez Soares, seria mais uma surra, desta vez nos antigos do Rio Grande do Norte, Alberi, o Bola de Prata, como atração e esperança.
Assisti à preliminar com o estádio cheio. Cerca de 30 mil pessoas. Jogaram pelo Estadual de profissionais, América e Alecrim. O verdão, que tinha um timaço e levaria o campeonato daquele ano, enfiou 4x2 nos rubros, Didi Duarte, Odilon, Baíca e Edmo trocando passes e botando o adversário na roda.
Mas o almoço com cerveja seria inesquecível para a torcida americana. Vingança temperada com orgulho de sobremesa. A honra da derrota seria devolvida por um gigante de passos lentos, andar de tombadilho, gingado inconfundível de malandro da Lapa carioca.
Jogaria com a camisa de número 9, enfiado entre os beques, sob a vigilância esbelta de Djalma Dias, pai de Djalminha ex-Flamengo e Palmeiras, e uma flor de exuberância. E do correto Alfredo Mostarda, reserva de Marinho Perez na Copa do Mundo de 1974.
Hélcio Jacaré, meiões arriados, calção justíssimo para o corpanzil leniente, nunca ameaçaria o esquadrão de Rivelino, repetiam os comentaristas e o narrador da Bandeirantes, todos eles exaltando a idolatria potiguar por Alberi.
Bola rolando, Hélcio, num compasso, mal se movia, enquanto Alberi se desdobrava para lavar a alma potiguar. Hélcio, gordo, desafiava a lógica dos preparadores físicos, mantendo-se em pé, a 40 graus à sombra de um quase meio-dia.
Até que rolaram uma bola na entrada da área pelo lado esquerdo, no famoso gol do placar. Acho até que o passe foi de Anchieta, competente lateral-esquerdo campeão pelo ABC e com boas passagens pelo Alecrim, Baraúnas e times da Paraíba. Hélcio recebeu, dominou como se fosse um malabarista, girou rápido.
Hélcio deu um drible milimétrico em Djalma Dias. Veio Alfredo Mostarda e ele cortou num toque seco. Bateu forte, um balaço, no ângulo do goleiro Ado. Um gol que fez o estádio sacudir. Era o segundo do Rio Grande do Norte, que passava a perder, como perderia, por 4x2. Todas as entrevistas foram direcionadas a Hélcio, a surpreendente elasticidade de um doce alligatoridae.
Hélcio comprovou para o país que via atônito aquela subversão da natureza atlética, a fama de Felipe Camarão, Câmara Cascudo, Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nas telas do Oiapoque ao Chuí, aquele homem trouxe à planície a constelação que ensaiava uma humilhação aos nativos.
E Hélcio animou-se. Passou a fintar Toninho Baiano, jogando-o à linha lateral com uma jogada de efeito. A tabelar com Alberi. Frio como se passeasse num calçadão vazio, tomado de brilho e tranqüilidade.
Eu sabia, antes do recital, que na metade dos anos 1970, o ABC deixou de mandar sozinho no futebol do Estado. A culpa havia sido dele, Hélcio, que, pelas fotografias, aparecia como um Pantera Negra acima do peso pelos médicos e acima da inteligência média dos colegas. Hélcio chegou em 1973 para disputar o Brasileiro e foi bicampeão em 1974 e 1975.
Futebol tão esquisitamente perfeito, que um comentarista e editor de esportes local, de quem tenho a satisfação de herdar o nome, encontrou a definição perfeita do craque Hélcio Jacaré. Rubens Lemos, o pai, o melhor, assim escreveu: Hélcio contraria a lei da gravidade justifica a relatividade. É um corpo pesado que flutua leve como pluma. Eis um craque.”
E seguia a exaltação mais do que justa: “Uma exceção-verdade. Craque é exceção. Hélcio é o supra-sumo dos bons jogadores, como o gênio é supra-sumo dos craques. Aquele ar enigmático, sugerindo máscara. Assim é o jogador que veste(em 1975), a camisa do América. Os defeitos desaparecem em campo. A jogada começa lenta, bola assustada. A bola vira feitiço nos pés de Hélcio.”
O encerramento de Rubens Lemos, pai revela seu estado de excitação plena, com o futebol e a atmosfera existencial: “O toque do craque é o gesto de carícia. Há, até mesmo, um determinado erotismo. A bola sai dos seus pés como uma moça virgem pudica.”
O autor, o homenageado e a manhã de 1986 já se foram. Hélcio Jacaré, o peso na estampa, a elegância no jogo bem feito, é um pedaço do inesquecível que a derrubada do Castelão(Machadão) será incapaz de destruir. Sonhos e heróis são pedaços de emoção. A eternidade de chuteiras não cai por terra.
* texto publicado na coluna Passe Livre, Jornal de Hoje em 01/09/2011
Jornalista
Quando nem se pensava em TV por assinatura e quem gostava de futebol, deixava o domingo dentro do lençol, ligado na Rede Bandeirantes. Transmissões ao vivo de campeonatos da Itália ao Gabão, de Bragança Paulista ao Afeganistão. Sem pagar nada, o fanático via de peteca a sinuca, de basquete a arremesso de disco.
Naquele tempo, a Bandeirantes juntou craques veteranos, montou uma ótima seleção de masters que invadia os gramados e as às telas do país sempre às 11 da manhã. Jogava-se em Araraquara, Colatina, Teresina, Cuité. O narrador Luciano do Valle chefiava a equipe de esportes e treinava o time.
A meninada, então, conheceu os dribles curtos e os elásticos que Rivelino, inspirador de Maradona, aplicava nos marcadores postos abaixo. Riva era a estrela da companhia, que ainda tinha Ado tricampeão reserva de 1970 no gol, os falecidos Toninho Baiano na lateral-direita, Djalma Dias na zaga e Cafuringa na ponta-direita, Clodoaldo, Edu do Santos, na ponta-esquerda e Lola, ex-Atlético(MG), de centroavante.
Num dos belos domingos de minha vida, em 1986, aos 16 anos incompletos, fui ao ainda Castelão por volta das 8 da matina, esperar pela seleção de masters do Brasil. Na previsão do comentarista da Bandeirantes, Juarez Soares, seria mais uma surra, desta vez nos antigos do Rio Grande do Norte, Alberi, o Bola de Prata, como atração e esperança.
Assisti à preliminar com o estádio cheio. Cerca de 30 mil pessoas. Jogaram pelo Estadual de profissionais, América e Alecrim. O verdão, que tinha um timaço e levaria o campeonato daquele ano, enfiou 4x2 nos rubros, Didi Duarte, Odilon, Baíca e Edmo trocando passes e botando o adversário na roda.
Mas o almoço com cerveja seria inesquecível para a torcida americana. Vingança temperada com orgulho de sobremesa. A honra da derrota seria devolvida por um gigante de passos lentos, andar de tombadilho, gingado inconfundível de malandro da Lapa carioca.
Jogaria com a camisa de número 9, enfiado entre os beques, sob a vigilância esbelta de Djalma Dias, pai de Djalminha ex-Flamengo e Palmeiras, e uma flor de exuberância. E do correto Alfredo Mostarda, reserva de Marinho Perez na Copa do Mundo de 1974.
Hélcio Jacaré, meiões arriados, calção justíssimo para o corpanzil leniente, nunca ameaçaria o esquadrão de Rivelino, repetiam os comentaristas e o narrador da Bandeirantes, todos eles exaltando a idolatria potiguar por Alberi.
Bola rolando, Hélcio, num compasso, mal se movia, enquanto Alberi se desdobrava para lavar a alma potiguar. Hélcio, gordo, desafiava a lógica dos preparadores físicos, mantendo-se em pé, a 40 graus à sombra de um quase meio-dia.
Até que rolaram uma bola na entrada da área pelo lado esquerdo, no famoso gol do placar. Acho até que o passe foi de Anchieta, competente lateral-esquerdo campeão pelo ABC e com boas passagens pelo Alecrim, Baraúnas e times da Paraíba. Hélcio recebeu, dominou como se fosse um malabarista, girou rápido.
Hélcio deu um drible milimétrico em Djalma Dias. Veio Alfredo Mostarda e ele cortou num toque seco. Bateu forte, um balaço, no ângulo do goleiro Ado. Um gol que fez o estádio sacudir. Era o segundo do Rio Grande do Norte, que passava a perder, como perderia, por 4x2. Todas as entrevistas foram direcionadas a Hélcio, a surpreendente elasticidade de um doce alligatoridae.
Hélcio comprovou para o país que via atônito aquela subversão da natureza atlética, a fama de Felipe Camarão, Câmara Cascudo, Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nas telas do Oiapoque ao Chuí, aquele homem trouxe à planície a constelação que ensaiava uma humilhação aos nativos.
E Hélcio animou-se. Passou a fintar Toninho Baiano, jogando-o à linha lateral com uma jogada de efeito. A tabelar com Alberi. Frio como se passeasse num calçadão vazio, tomado de brilho e tranqüilidade.
Eu sabia, antes do recital, que na metade dos anos 1970, o ABC deixou de mandar sozinho no futebol do Estado. A culpa havia sido dele, Hélcio, que, pelas fotografias, aparecia como um Pantera Negra acima do peso pelos médicos e acima da inteligência média dos colegas. Hélcio chegou em 1973 para disputar o Brasileiro e foi bicampeão em 1974 e 1975.
Futebol tão esquisitamente perfeito, que um comentarista e editor de esportes local, de quem tenho a satisfação de herdar o nome, encontrou a definição perfeita do craque Hélcio Jacaré. Rubens Lemos, o pai, o melhor, assim escreveu: Hélcio contraria a lei da gravidade justifica a relatividade. É um corpo pesado que flutua leve como pluma. Eis um craque.”
E seguia a exaltação mais do que justa: “Uma exceção-verdade. Craque é exceção. Hélcio é o supra-sumo dos bons jogadores, como o gênio é supra-sumo dos craques. Aquele ar enigmático, sugerindo máscara. Assim é o jogador que veste(em 1975), a camisa do América. Os defeitos desaparecem em campo. A jogada começa lenta, bola assustada. A bola vira feitiço nos pés de Hélcio.”
O encerramento de Rubens Lemos, pai revela seu estado de excitação plena, com o futebol e a atmosfera existencial: “O toque do craque é o gesto de carícia. Há, até mesmo, um determinado erotismo. A bola sai dos seus pés como uma moça virgem pudica.”
O autor, o homenageado e a manhã de 1986 já se foram. Hélcio Jacaré, o peso na estampa, a elegância no jogo bem feito, é um pedaço do inesquecível que a derrubada do Castelão(Machadão) será incapaz de destruir. Sonhos e heróis são pedaços de emoção. A eternidade de chuteiras não cai por terra.
* texto publicado na coluna Passe Livre, Jornal de Hoje em 01/09/2011
3 comentários:
Um texto completíssimo, parabéns. Tive o prazer de vê-lo jogar pelo meu querido mecão, dos golaços e das jogadas endiabradas juntamente com Olimpio e ivanildo. Quando partiam pela esquerda ninguem segurava o ataque do glorioso time rubro. Tive o prazer de bater umas poucas peladas com o Helcio depois que paraou de jogar profissionalmente, era um cracaço. De tres dedos colocava a bola aonde queria, o drible seco era mortal.
Rubinho e seu texto magnifíco exprimem todo saudosismo que sinto de um tempo em que o Mecão tinha um verdadeiro craque. Para quem viu jogadores como Elcio, fica difícil engolir chamarem uns jogadores comuns que temos hoje no América de diferenciado e craques. Podem não publicar, mas recuso-me a aceitar como craques jogadores que nem gandulas seriam naquele tempo dos verdadeiros craques.
Walsil.
Camilo disse:
Concordo plenamente com o texto. Também tive o privilégio de assistir Hélcio jogar, parecia que estava sozinho no campo tamanha era a facilidade de driblar os adversários e colocar os companheiros na cara do gol, tinha uma categoria incomparável. Lembro-me de um jogo entre América e Internacional pelo campeonato brasileiro quando Hélcio colocou a bola entre as pernas de Figueroa, que na época era o melhor zagueiro do Brasil e um dos melhores do mundo. O Castelão, era esse o nome na época, quase vai ao chão. Saudades daqueles tempos que não voltam mais. Aproveito a oportunidade para parabenizar Rubinho que tem se mostrado um profissional competente e imparcial apesar de torcer pelo nosso maior adversário. Continue assim Rubinho, pois os verdadeiros profissionais não vestem camisas de clube quando estão no exercício da profissão.
Postar um comentário
Política de moderação de comentários:
A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência. Não serão aceitos comentários anônimos ou que envolvam crimes de calúnia, ofensa, falsidade ideológica, multiplicidade de nomes para um mesmo IP ou invasão de privacidade pessoal / familiar a qualquer pessoa. Comentários sobre assuntos que não são tratados aqui também poderão ser suprimidos, bem como comentários com links. Este é um espaço público e coletivo e merece ser mantido limpo para o bem-estar de todos nós.
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.